Reservei o fim de semana passado para re-assistir à fabulosa atuação de Gary Oldman em "Darkest hour"(Destino de uma nação, no Brasil), que na pele do "bulldog britânico" abocanhou sua primeira estatueta em 2018. No entanto, não é sobre o filme que pretendo falar. Gostaria, na verdade, de compartilhar que ocorreu enquanto assistia aos últimos minutos do filme. Mais precisamente, um comentário - daqueles que sobrem e descem o canal do esôfago em ruminação contínua antes da digestão. A situação é a seguinte: Após o apoteótico discurso de Churchill sobre a não rendição do Império Britânico, que se arriscava a lutar sozinho - como, de fato, ocorreu por dois longos anos - contra o "odioso aparato nazista", um dos meus companheiros de sessão bufou: "Um colonizador superestimado. Hitler perderia com ou sem ele"
A despeito do despeito, penso que ele tem razão. Mas por que? Não é de hoje que o "maior britânico de todos os tempos" tem estado sub judice por parte da opinião pública do Reino Unido. No altos do processo póstumo, constam fatos, com razão, tenebrosos: A grande fome de Bengala; o antissemitismo latente de sua classe aristocrática e outras declarações supremacistas; a simpatia inicial com o fascismo italiano; a flama imperial... A lista é longa e a máxima é mais do que nunca verdadeira: Nenhum herói resiste à lupa de um bom biógrafo.
Se formos acometidos pela mesma miopia crônica dos moralistas de plantão, iremos até esse ponto, sempre com sempre com o indicador apontado para longe do nosso círculo. O problema é que os bons biógrafos também sabem que a homogeneidade não é um atributo do mundo. Apenas os hipócritas, com seu édipo mal resolvido, transferem esse desejo infantil e intangível para a História, esquecendo-se que esta não é uma ciência de círculos, mas sim de poliedros. Afinal, o que é a História senão uma espécie de geometria, um registro das geometrias humanas ao longo do tempo?
Concordo com o exercício contra-factual do amigo: Sem Churchill, teríamos vencido a guerra. O que perderíamos - de modo tão inestimável quanto as vítimas dos bombardeios - seria a sua forma poliédrica; essa que hoje está sob escrutínio. Vamos aos fatos: Ganha-se uma guerra sem poliedros, um "circular" como Duque de Wellington assim o fez. O que não se faz sem os poliedros é História com "H" maiúsculo. Esta História, que nos mede com um parquímetro desde a maternidade, tende a descartar impiedosamente formas demasiado lisas, coesas, regulares... E quando as inclui em seus relatos é com fins de catalogação, talvez porque deram a sorte de cruzar o caminho de uma forma poliédrica, o que rendeu-lhes uma modesta estátua ou uma nota de rodapé - en passant -, que, na realidade, denota um velado desprezo da História pelas formas que se começam e se encerram em sua própria homogeneidade.
Não. A História com "H" maísculo tem sido sobre as formas mais complexas: Alexandre, Napoleão, Maquiavel, Wagner, Dostoievski, Nietzsche, Marx, Freud, Foucault, Monteiro Lobato, Nelson Rodrigues... Todos, em seus diferentes graus, qualidades e interesses, eram formas poliédricas da História, como Churchill. Sua guinada "contra a tirania" foi motivada por questões internas ou externas? Libertárias ou imperiais? Humanitárias ou egóicas? Ah! Tudo dependerá a partir de quais faces olharemos o poliedro - todas tão verdadeiras e tão incompletas sem as outras...
Não preciso fazer uma defesa do bulldog, pois sua biografia tanto o exalta quanto o condena, tornando o julgamento póstumo parte do jogo. Assim, os defensores de Churchill deveriam saber que estar aberto a ser inscrito, aclamado, criticado e - eventualmente - rejeitado... É o preço! O alto preço do pedágio que todos os poliedros humanos, demasiado humanos devem pagar antes de adentrar no volúvel e seleto hall da História.
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