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O "lado certo da história" e a empáfia sacerdotal

Atualizado: 11 de fev.

Há muito me habituei com o purulento modo das mídias sociais. Achar algo sensato, um mísero traço de bom-senso, pode ser tão difícil quanto peneirar diamantes de sangue nos rincões de Serra Leoa. No entanto, semanas atrás, fui agraciado com um depoimento de rara lucidez; grifado com a genuína assinatura de um profeta capaz de enxergar o óbvio. Anderson França, o nome do sujeito. Auto-exilado na Europa em razão de ameaças sofridas em território brasileiro da parte de milicianos.


O alvo do texto de Anderson é a arrogância da esquerda e seu complexo de superioridade moral - o que, para alguns, soa quase como um pleonasmo histórico. Puristas inveterados, Anderson acusa os correligionários de não compreenderem a realidade brasileira; em especial, o modo de vida evangélico. A denúncia é cristalina: Toda empatia humanitária, toda sororidade cultivada nos arredores do Jardim Botânico, não parecem se estender a alegada burrice ou canalhice dos milhões de homens e mulheres "crentes" espalhados por esse vasto Brasil. Pela ótica do "lado certo da história", revolução de verdade não se faz com esse tipo de gente, uma diferença alheia. Eis o novo mote dos "marxistas": "Somente com a diferença que nos é familiar se pode mudar o mundo!" E, assim, juízos segregatícios de toda sorte são disparados, indiscriminadamente, contra os "hereges" que não partilham da Última Ceia regada a rúcula e carne de soja. Simão de Montfort ficaria orgulhoso. Na inclemente pira do "lado certo da história" poucos se salvam! Poderia eu fingir espanto com o triste fato se Nelson Rodrigues já não houvesse alertado lá atrás: "não me admiraria nada que, no futuro, os nossos jovens socialistas queimem poetas no meio da rua". Ora, não se queima poetas logo de cara; treina-se primeiro com os cristãos. Penso, porém, que há algo ainda mais tragicômico nisso tudo: Pior do que não saberem avaliar as complexidades e nuances de um universo outro - que somente aos idiotas apareceria como um monólito político - é o fato de os alecrins do progressismo não conseguirem compreender o solo de onde partem, e serem completamente cegos para os detalhes que os unem àquilo que criticam.


Tomo a liberdade de complementar a sábia reflexão de Anderson ressaltando outro fato óbvio: progressistas são crentes na mesma medida em que os crentes dos nossos dias são ateus. Operam, cada qual ao seu modo, no mesmo registro de crença e descrença, esperança e desesperança. Para explicar, preciso invocar brevemente a Bíblia. Velha como é, quase ninguém mais a lê. Uma fatura de imposto de renda tem merecido, nos dias de hoje, mais atenção filológica do que qualquer passagem das escrituras - que, se ainda serve para corrigir o grave desnível de uma mesa qualquer, é muito! Mas, aqui, precisamos recorrer a ela, que nos apresenta um dos arquétipos mais relevantes da história da cultura, o pai de todo senso de superioridade moral: o sacerdote.


Mediador entre Deus e os homens, não havia entre os hebreus figura de maior importância. Não tinha cetro, e tampouco precisava; havia sempre um lacaio-rei para ostentá-lo em seu lugar. Detentor de uma percepção e criatividade cirúrgicas, essa altiva figura fincou as bases de um império que atravessaria incontáveis eras: a ele devemos toda a civilização! Como conseguiu? Não precisei ler os grandes niilistas para desvendar - ainda em meus anos de menino crente - o óbvio: a sedução é o poder do sacerdote. É o seu único poder. Seduz com a promessa de igual empáfia. Marca, com uma trilha de pão, o caminho que transformará o desesperado homem comum em um outro superior - não tenho dúvidas de que, na assembleia dos gênios, o sacerdote é o presidente, Newton e Einstein são o 1° e 2° secretários. Lugar merecido. Afinal, foi ele quem percebeu o nosso patológico desprezo pelo humano e sua condição igualitariamente mortal perante o mundo natural. Quem acusa o sacerdote de criar um rebanho de iguais limita-se a olhar de dentro. A sua maior criação foi, na verdade, o rebanho dos igualmente diferentes! Abrigou no redil aqueles que, igualmente, desesperavam para se sentirem outros perante a democrática insignificância cósmica.


Espero ter dito o suficiente. Mas, se por um acaso, houver quem deseje mais, tomem o conselho deste crente não praticante: leiam o Eclesiastes! Por ora, basta-nos dizer que, no fim, o infeliz teve a cabeça espatifada por um reboco despencado da abóbada dos antigos valores cristãos. Deixo, aqui, um incenso em sua memória... Há de descansar, placidamente, com a certeza de que a sua sabedoria e estratégia milenares conservam-se com o esplendor, inoxidável, de uma Alessandra Negrini. Afinal, a cada alvorada, nascem "franquias modernas" que perpetuam o seu perspicaz empreendimento. Ora mais à direita; ora mais à esquerda. Ora mais erudito; ora mais imbecil. Não importa! É ainda a dinâmica sacerdotal, diferenciadora e sectária, trazendo o sentido superior aos corações dos "novos eleitos".


Exemplo concreto: Certa vez, conheci uma pequena. Um colírio. Amante dos animais, era também de uma gentileza superficial admirável; daquelas que encanta no primeiro olhar. Contudo, bastaram-me alguns dias de prosa para ser apresentado à personalidade prosélita:


- Então, você come carne? - perguntou, vendo-me saborear uma picanha grelhada. A decepção era notória.

- Tem problema?

- Homem sem defeito de fábrica não é homem... - ironizou com sorriso amarelo.

- Não sou tão evoluído para comer carne do futuro.

- Percebe-se!

- Uh! Você realmente se sente moralmente superior por não comer carne? - dei-lhe meu olhar de desprezo, guardado especificamente para essas ocasiões.

- Óbvio!

- O certo é perspectivo, minha flor...

- Só na tua cabeça.

- Na de todas! Veja só. Na perspectiva da lombriga, quem tá na merda tá no paraíso.

Verteu-se em cólera. Podia jurar que ela jogaria uma versão vegana do Levítico na minha cara. Não o fez. Em contrapartida, o episódio desfez o encanto para ambos. Sem problemas. O importante aqui é atentar para a aura "mosaica" da dita cuja, pronta para queimar qualquer outra diferença em um auto de fé. Detesta-se! Mas quem nunca? Quem nesta Terra já quis, de fato, apenas "ser humano"? Um tipo extinto, talvez. O humano, por si só, é de uma banalidade intragável; condenado a vagar como um inseto kafkiano na fauna de um estoico Universo. Certa vez, ouvi de um cosmólogo combalido pela tristeza do álcool: "A diferença entre nós e o nada - se existe - é da ordem do infinitesimal". Zero surpresas. Para os físicos, acostumados a desprezarem o atrito dos fenômenos, pode parecer simples arredondar tudo para o zero. Mas a diferença existe, nós a criamos, e esses infinitesimais delirantes valem muito, valem a vida! Anotem: Há, para grande maioria de nós, infinitésimos intransponíveis, e que devem ser, o quanto possível, alargados... Estacionar, de corpo e alma, não de retórica, na estatística trivialidade humana perante o Universo é simplesmente insuportável. Não me surpreenderia, portanto, se, sob os auspícios de uma noite estrelada, o primeiro pensamento lúcido de um sacerdote houvesse sido o clássico: "A morte nivela tudo". A partir daí, o único animal da diferenciação, o homem, seria incapaz de não se diferenciar. Deu-se conta de que existe a partir disso. Diferencia-se dos outros porque precisa; do mesmo modo que precisa se diferenciar de um mundo objetivo para pensar qualquer objeto. Àquela altura, e seguramente ainda hoje, caminharíamos para a morte certa sem a fantasiosa convicção de sermos parte de alguma outra coisa, sem um algo mais para ser e desejar. Cada infinitésimo para longe do nada, para longe da óbvia irrelevância natural, valia mais do que toda a riqueza da Terra... O resto é uma caricatura da nossa verdade: investimos sobre nós um chamado divino; erguemos um faraônico edifício moral; iniciamos outros como "essênios", controlamos as suas vontades e cremos esconjurar, com empáfia e descaro monumentais, a real condição de miseravelmente igual, de miseravelmente mortal. Bataille: O que somos senão uma mão que escreve teimando em ultrapassar os limites da mesma mão que, um dia, há de morrer?


A teimosia sacerdotal permanece: se, por um lado, a empáfia cristã e seu desprezo histórico por outros modos de ser ocultam aquela que é uma das mais antigas necessidades humanas, por outro, os contemporâneos também. É justamente no desespero de querer ser outro onde conservadores e progressistas, reacionários e revolucionários, crentes e descrentes fatalmente se encontram - no núcleo das doutrinas, dos identitarismos, dos sectarismos arde, em algum grau e qualidade, o incontornável desespero humano de querer ser algo além de si; um excesso, sedento por se afastar dos limites da morte e da própria banalidade. Novamente Bataille: "O homem, que tem, talvez, o seu orgulho, está mergulhado na massa humana". É onde todos estamos, ao menos estatisticamente. E enquanto nós, os orgulhosos, não cultivarmos formas de tolerar diferenças que não são a nossa imagem e semelhança, o espectro sacerdotal há de operar no meio de nós... Seja no histrionismo dos cultos evangélicos da periferia ou na paranóica "metafísica dos costumes linguísticos" de pseudo-intelectuais do Leblon. Ele há de estar! Encerro, pois, com a verdade dos tempos (se é que há uma): sem a empáfia sacerdotal, (ainda) não se sabe viver.

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