No último verão carioca, atravessei o fervor dos blocos de carnaval para encontrar, por vez primeira, com uma figura bastante peculiar. "Ah! Você precisa conhecer... Ele é especialista em Nietzsche e ainda é pastor". Pronto! Foi o suficiente para gerar, em mim, um caleidoscópio de questionamentos.
Às 14h00, recebeu-me na portaria com um abraço. Trajava bermudas e uma camisa suada do peito aos sovacos. No caminho para o elevador, olhou para o porteiro e disparou, do alto do seu ressentimento botafoguense: "O Flamengo se fodeu, hein!? Que piada!". Um Zé Carioca de marca maior! No apartamento, deparei-me com livros da mais refinada erudição cercados por artefatos espirituais de toda a sorte. Se não me tivessem alertado do metier, não saberia dizer se era filósofo, evangélico, macumbeiro ou, ainda, uma salada dos três!
Sentamos. Descontadas as frivolidades futebolísticas, direcionamos o papo para o âmbito da sua especialidade: a filosofia espiritual. Sem delongas, atirou contra o próprio autor de referência:
- Deus morreu na Europa. Aqui, não!
A paixão no olhar testificava a crença absoluta na lucidez da própria tese. Eis o que queria dizer: Nietzsche teria acertado sobre a queda dos antigos valores cristãos, mas somente no que concerne aos hegemônicos. O que ele teria a dizer sobre cristianismos dos quais não viu, tal como o brasileiro, que se encontra, talvez desde as incursões jesuíticas, às voltas com o mais profundo "imanentismo sincrético"? Parecia que, abaixo do equador, as reflexões do filósofo sobre o ocaso do tipo religioso teriam pouco valor.
Compreensível. Mas o fato de Nietzsche ser completamente cego para a religiosidade peculiar destas terras invalidaria a universalidade do seu diagnóstico sobre o progresso inevitável do ateísmo, ainda que em intensidades e formas diversas? Provoquei:
- Você não acha que tudo isso... - fitei os seus artefatos espirituais. - São sombras do velho Deus morto?
- Ah, meu camarada! - remexeu-se efusivamente em face do meu ceticismo. - Queria ver se Nietzsche teria coragem de falar isso na frente de uma pomba-gira... Eram só dois sopapos naquele bigode, pra ficar esperto!
- Achas que ele mudaria de ideia?
- Na hora! Sabe o que faltou para Nietzsche? Um banho de carnaval, uma gira de Exu!
Nietzsche e Exu na mesma frase... Tamanha beleza só brota no ecossistema brasileiro! Ali, capitulei. Do ceticismo argumentativo passei ao riso encantado. Era, ao menos, comicamente agradável a imagem de Dionísio aprendendo a tomar cachaça com um Tranca Ruas de terreiro. Mas e os fatos? Ora, diante da imaginação brasileira, que caia por terra a cidadela dos fatos... No país do futebol, a filosofia dos contrários de Heráclito é Ronaldinho, enquanto a lógica fria de Parmênides, um Dunga.
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