No Brasil, não se fala em outra coisa. Não se vai a uma padaria sem que alguém comente: "Viste o ataque em tal escola? A maldade humana não tem limites". Realmente, depois do holocausto, tudo parece permitido! O último horror deu-se na creche Bom Pastor, em Blumenau (SC). Na ocasião, um sujeito, movido por uma frieza raskolnikoviana, apanhou uma machadinha e assassinou, a sangue-frio, quatro crianças e feriu gravemente outras duas. Não houve conflito policial. O próprio assassino se entregou ao batalhão de polícia após sua tétrica obra. No inquérito, citou um cúmplice imaginário que o incitava ao infanticídio. Que lhe seja prontamente providenciado um lugar em uma prisão psiquiátrica!
Há muito a ser dito sobre o atentado, que já se soma a outros dois em menos de um mês (sempre em escolas). Há quem tema que estejamos na trilha dos Estados Unidos, cuja conformação social parece cultivar, como lírios num jardim, o modo de vida Serial-Killer. Deixo a discussão para os especialistas. Aqui, gostaria de olhar para outro detalhe: o caixão infantil.
Vendo aquelas pequenas urnas empurradas no carrinho pelos familiares rumo ao sepultamento, não pude deixar de pensar em como a dimensão das coisas importa. Lida-se bem com um caixão adulto. Dói, mas a dor vem acalentada pelo tamanho. Tem-se a impressão de algo que atingiu o apogeu da forma. Não apenas física. O adulto que morre fornece a imagem definitiva para todas as elucubrações dos vivos. Deixa-nos com suas aspirações, seus desejos, seus pecados e virtudes... Tudo!
Mas um caixão infantil é, por si só, misteriosamente desagradável. Duvido que alguém o contemple sem ser transpassado por um lancinante embrulho no estômago - ainda que esteja vazio! Por alguma razão instintiva, fere-nos o olhar. Tenho uma teoria óbvia: a pequena urna é uma agressão à nossa expectativa, à ordem "natural" dos acontecimentos. A beleza angelical do cadáver-criança contribui para a aura de mal-estar em face do futuro abortado. Crianças não morrem completas. Morrem como uma imagem inacabada de si mesmas; como rascunhos de uma vida que não foi, e cujo mistério do que poderia ter sido encontra-se para além da compreensão de todos os deuses. Eis o fato: caixões infantis roubam de nós a imaginação.
Que mãe ou pai, na agonia da perda, nunca sentiu a vontade de correr, ensandecido pelas ruas da cidade, erguendo o sinistro objeto? É hercúlea a vontade de escancarar ao mundo tamanha violação da ordem das coisas! O que os impede? Para a maioria, a fé afasta a possibilidade desse comovente ridículo. E foi agarrado a ela que um dos pais, cujo primogênito fora assassinado no atentado à creche, explicou a sua dor. Com uma abismal placidez, cedeu o perdão ao assassino de pronto, provocando a surpresa e comoção dos repórteres. É assombroso o que a fé genuína pode fazer! Digo "genuína" porque a morte de uma criança é, talvez, um dos maiores testes para quem diz ter fé. Quem resiste, com fé, à tentação dos "porquês" que circundam a perda de uma imaculada criatura, será crente a vida inteira! Está anestesiado pela frieza divina que nos permite seguir. Sim, a perda da hipersensibilidade - traço do animal sobrevivente - é uma das "dádivas da fé".
Nunca vi um caixão infantil, mas cresci à sombra de um. Sem citar nomes, afogou-se aos cinco anos, num lago. Bastou um momento de distração, em um passeio de família, para o raio do trágico nos pulverizar! Comprime-me a alma apenas pensar nos gritos, nos incontáveis e desesperados gritos que deu sem ser ouvido. Alguns tem o privilégio de ser fitado pela família com o último olhar da despedida. Mas nem os ouvidos ele teve, a água não deixou. Preso ao fundo, sufocou, sozinho, sem saber se o encontrariam. E somente após o último alvéolo encharcado, a morte, como a sua única companhia, o abraçou. Como ocorre nesses casos, a fé livrou toda a família da loucura de afirmar uma morte sem propósito - assim, salvaram-se do inferno das interrogações. Pelo meu lado, posso dizer que a brisa dos lagos ainda me traz a mesma sensação nauseante dos caixões infantis.
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